top of page

Não dói o corpo, dói a alma, dói o coração de Deus

  • Larissa Fernandes Menegatti
  • 28 de mai. de 2016
  • 4 min de leitura


Na semana de Corpus Christi, solenidade do Corpo de Cristo, o corpo de uma menina de 16 anos é cruelmente violentado sexualmente. Como a vítima mesma declara: "não dói o útero, dói a alma!". O tema da dignidade da mulher perpassa fortemente a questão da corporeidade. São João Paulo II em seu pontificado desenvolveu uma antropologia teológica do corpo considerando-o como elemento de identidade e de dignidade da pessoa. E refletiu em discursos e documentos, como Mulieris Dignitatem, sobre a dignidade da mulher. Ao refletir sobre a dignidade da mulher, João Paulo II apresenta os fundamentos antropológicos e teológicos do conceito de pessoa, destacando os elementos comuns entre os dois textos de Gênesis em que homem e mulher são seres humanos, em igual grau e dignidade, criados à imagem e semelhança de Deus. O Papa Francisco destaca em Amoris Laetitia "costumes inaceitáveis" como a "violência vergonhosa" contra as mulheres (AL, 54)


É alarmante o alto índice de violência sexual contra a mulher, incluindo os casos de feminicídio íntimo no Brasil e na América Latina. Segundo o Centro de Estudos sobre o Sistema de Justiça (CEJUS), os casos de homicídio cometido contra as mulheres se dão, na sua maioria, por arma branca e em casa. O mais escandaloso é a maneira pela qual foi infligida a violência, a diversidade dos instrumentos usados no crime e a imposição de sofrimento às vítimas anteriormente à execução, indicando desse modo, a intenção tanto de provocar extremo sofrimento anterior à morte quanto o desejo de aniquilar fisicamente a mulher (CEJUS, 2015, p.39-40).


A violência sexual como negação do outro


Não podemos ignorar que muitas vezes a sexualidade se despersonaliza e enche de patologias, de modo que se torna cada vez mais ocasião e instrumento de afirmação do próprio eu e de satisfação egoísta dos próprios desejos e instintos (AL 153).


Esse cenário apresenta a sexualidade dissociada de outros fatores eticamente comprometedores. O Papa Francisco em Amoris Laetitia fala do "abuso, da perversão e da violência sexual que resultam de uma distorção do significado da sexualidade e sepultam a dignidade do outro" (AL 153). Civilizações antigas pressentiam que a sexualidade não fosse um fenômeno inocente e insignificante, mas que implica e coloca em evidência forças obscuras e temíveis, equiparadas com a violência (LACROIX, 2009, p.31). Segundo René Girard, a melhor forma de evitar a violência é a instauração das diferenças entre o permitido e o proibido, o legítimo e o ilegítimo.


Parece atualmente supérfluo ou descontextualizado não enxergar a natureza boa, inofensiva e leve da sexualidade, da qual só pode sair coisa boa. Contudo, essa concepção simplista e imatura das relações e da sexualidade são nocivas e indicam sobretudo um modo de experimentar-se a si mesmo por meio do outro, mais do que encontrá-lo verdadeiramente (LACROIX, 2009, p.33). A falta de reciprocidade nas relações humanas, marcadas pelo domínio sobre o “sexo frágil”, silencia a dignidade que perpassa o corpo e revelam que quando desaparece a doação de si, surge a destruição do outro.


Aprendamos com Jesus


Aparecem diversas mulheres no itinerário da missão de Jesus, confirmando a “novidade de vida” evangélica, que reconhece e valoriza a comum dignidade. Uma novidade instigante não somente para os inimigos de Jesus, mas até mesmo para seus discípulos. Em Mulieris Dignitatem São João Paulo II João Paulo II elenca no documento o encontro de Jesus com várias mulheres acometidas por enfermidades (Lc 13,11; Mc 1,30; Mc 5, 25-34). Mulheres às quais Jesus lhes restitui a vida e a vida dos seus (Mc 5,41; Lc 7,13; Mt 15,21-28).


O Evangelho ainda cita mulheres que se tornaram seguidoras de Jesus: “Joana, esposa do administrador de Herodes, Suzana e muitas outras” (Lc 8,1-3); como cita também nas parábolas figuras femininas a fim de ilustrar aos seus ouvintes a verdade sobre o Reino de Deus (Lc 15, 8-10; Mt 13,33; Mt 25,1-13). O texto atribui relevância ao relato evangélico da oferta da viúva (Lc 21,1-4), recordando a situação de vulnerabilidade das viúvas na época. Faz menção às mulheres que acompanhavam Jesus até o Gólgota, chamadas por ele de filhas de Jerusalém (Lc 23,28). Sua atitude chama atenção redobrada quando se dirige às mulheres, desprezadas publicamente como pecadoras excluídas do povo.


A primeira das mulheres destacadas na carta é a samaritana do qual o Evangelho de João (4,7-27) relata seu encontro e seu diálogo com Jesus; depois a mulher condenada pela opinião comum como “pecadora pública” que entrando na casa do fariseu para ungir os pés de Jesus com óleo perfumado é declarada por ele perdoada de seus pecados por causa do amor (Lc 7,37-47); e por último e não menos importante, a mulher surpreendida em adultério (Jo 8, 3-11). Neste episódio, Jesus desperta a consciência do pecado nos homens que a acusam para apedrejá-la, pois esta situação abusiva, espelho de outras situações análogas na história da humanidade, confirma a transgressora injustiça machista.


Uma mulher é deixada só, é exposta diante da opinião pública com ‘o seu pecado’, enquanto por trás deste ‘seu’ pecado se esconde um homem como pecador, culpado pelo ‘pecado do outro’, antes co-responsável por ele. E, no entanto, o seu pecado escapa à atenção, passa sob silêncio, aparece como não responsável pelo ‘pecado do outro’! Às vezes ele passa até a ser acusador, como no caso descrito, esquecido do próprio pecado (MD, 14).


São João Paulo II provoca a discussão sobre alguns elementos da época, que permanecem escandalosamente atuais, chamando a atenção para o fato de que muitas vezes, sob a influência de uma cultura machista, falocêntrica, a mulher paga pelas consequências do pecado sozinha, como se o homem não tivesse participado dele ou até mesmo como se não fosse responsável por ele, como no caso do estupro.


Concluindo...


O corpo na perspectiva da fé cristã é, pela encarnação do Verbo, entendido como lugar teológico e de identidade humana que confere sua dignidade. A violência de gênero entendida aqui como a violência contra a mulher, tornou-se, ao longo do tempo, uma prática naturalizada pela sociedade decorrente da cultura patriarcal.


Como se pode ver, a prática de Jesus supera a postura machista instalada, não somente no povo, mas também na mentalidade dos seus discípulos que foram aprendendo seu modo de ser e agir humano/divino. Deus se fez carne, assumiu nossa carnalidade para redimi-la. A salvação cristã perpassa o corpo, e a criação como um todo, lugar revelador da presença de Deus. Aprendamos com ele.


 
 
 

Comments


Destaque
Tags
bottom of page