A dignidade da Mulher: um olhar de reciprocidade a partir de João Paulo II
- Larissa Fernandes Menegatti
- 29 de fev. de 2016
- 6 min de leitura
Urge a necessidade de uma reflexão sobre dignidade capaz de articular o feminino e o masculino em relação de reciprocidade e/ou de aliança, superando uma espécie de “guerra dos sexos”, elas contra eles ou vice-versa que enfraquece o nós que constitui o humano.

A Carta Apostólica Mulieris Dignitatem, que trata sobre a vocação e a dignidade da mulher, de João Paulo II, é o primeiro documento do Magistério Pontifício a refletir sobre a mulher, num contexto onde a questão da mulher começa a emergir com força, os movimentos feministas posicionam-se em busca da igualdade de direitos e da sua emancipação. Ao refletir sobre a dignidade da mulher, João Paulo II apresenta os fundamentos antropológicos e teológicos do conceito de pessoa, com base nos escritos de Edith Stein (1891-1942), mística e filósofa da escola fenomenológica, beatificada em 1987 e canonizada em 1998 no seu pontificado.
1. O Conceito de Dignidade
O conceito de dignidade possui uma densidade de significado valorativo para as discussões no campo ético e antropológico. Trata-se de um conceito basilar na defesa dos direitos humanos. Embora instrumentalizado ideologicamente em determinadas situações históricas, não há como negar seu peso conceitual quando abordamos questões éticas, principalmente relacionadas à defesa da vida e da pessoa humana. O princípio de dignidade da pessoa humana consta no artigo primeiro da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), no primeiro artigo da Constituição Brasileira (1988), assim como também na Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (2005).
Com o reconhecimento dos direitos humanos no contexto das grandes guerras e das revoluções a Igreja, num processo laborioso e doloroso de aggiornamento no Concílio Vaticano II (1962-1965), resgata nas fontes bíblicas e patrísticas o fundamento da dignidade da pessoa humana. Na Bíblia, a fé hebraica no Antigo Testamento afirma que Deus fez o ser humano à sua imagem e semelhança (Gn 1,26). A fé cristã no Novo Testamento fundamenta também a dignidade humana baseada nesse princípio criador de sacralidade do ser humano e o corrobora na encarnação do Filho de Deus. Para os cristãos, a dignidade humana se dá por sua relação com o Transcendente e não por seu status social, racial, sexual, moral ou econômico. Para os Padres da Igreja Gregório de Nissa (394 d.C), Gregório de Nazianzo (390 d.C), Atanásio (373 d.C), Agostinho (430 d.C) e outros, o conceito de dignidade humana estava implícito nas reflexões sobre a Imago Dei. Essa fundamentação bíblico-patrística da dignidade humana oferece a substância ética de bens e valores aos quais não se pode renunciar.
2. A Dignidade da Mulher
O tema sobre a dignidade da mulher, embora tenha assumido cada vez mais uma importante reflexão no campo da ética e da antropologia, merece uma particular atenção na pesquisa teológica em diálogo humilde e aberto com diferentes áreas do conhecimento devido ao seu impacto no âmbito pastoral e social.
Importante destacar que a perspectiva feminista foi importante para uma revisão de interpretações veladas e outras até mesmo explícitas de imposições patriarcais na história da humanidade. Para Wanda Deifelt (2008, p.985-986), a teologia feminista, assim como o movimento feminista advoga a equiparação de direitos e deveres entre mulheres e homens, e ao mesmo tempo denuncia a disparidade social e econômica entre homens e mulheres, no intuito de construir uma sociedade em que ambos tenham o mesmo valor.
Como se pode perceber, as questões de gênero correm o risco de serem resumidas ou estigmatizadas à “problemas de mulher”. Na verdade trata-se, antes de tudo, de superar essa interpretação simplista para encararmos como um problema de humanidade.
3. A Dignidade da Mulher em João Paulo II
O período do pontificado de João Paulo II se dá nesse contexto histórico-cultural apresentado até aqui. Em resposta às situações sociais do seu tempo, o pontífice desenvolve uma antropologia teológica do corpo considerando como elemento de identidade e de dignidade da pessoa. João Paulo II reflete a dignidade da mulher na perspectiva de uma antropologia dual, baseada no conceito sobre a humanidade que só pode ser uma se acolher o masculino e o feminino que a constituem. Nesse viés, homem e mulher necessitam acolher a unidade que precede sua distinção e a diferença que os faz ser um com o outro e um pelo outro.
O valor filosófico, bem como teológico da mensagem de João Paulo II nos permite acolher as pistas mais válidas do pensamento feminino e feminista sobre a mulher, integrando-o em análise fundadora do ser humano que se torna, além disso, imprescindível para a elaboração de uma antropologia dual (ALES BELLO, 2011, p. 333).
No conjunto de suas obras, destacam-se alguns documentos específicos sobre e para as mulheres: a Carta Apostólica Mulieris Dignitatem (1988), a Carta às Mulheres (1995), assim como o conjunto de catequeses proferidas no início de seu pontificado entre 1979 a 1984, intitulado “Teologia do Corpo” e, ainda, uma série de discursos proferidos no Ângelus entre 1995 a 1996 nos quais também o tema da mulher é igualmente refletido. Este artigo tem por foco principal a Carta Apostólica Mulieris Dignitatem, contudo, não desconsidera-se a importância das outras obras elencadas aqui.
Para João Paulo II a dignidade e a vocação da mulher é objeto de constante reflexão humana e cristã como um “sinal dos tempos” (MD, 1). A própria carta destaca o esforço do Magistério da Igreja para refletir sobre o tema em diversos discursos de seus antecessores. Para situar o contexto histórico da carta, vinte anos após o Concílio Vaticano II na Assembleia do Sínodo dos Bispos em outubro de 1987, ao refletir sobre a vocação e missão dos leigos na Igreja e no mundo, buscou-se aprofundar os fundamentos antropológicos e teológicos referentes ao significado e à dignidade do ser mulher e do ser homem, a fim de embasar sua presença ativa na Igreja e na sociedade.
João Paulo II expõe a estrutura de Mulieris Dignitatem partindo primeiramente da Revelação, com ênfase na figura de Maria presente nos Evangelhos e na espiritualidade do Povo de Deus, apresentada como modelo feminino de alta dignidade. Em seguida desenvolve o significado dos dois relatos da criação (Gn. 1,1-2,4a e 2,4b-25). A criação do homem e da mulher, apresenta o ser humano numa perspectiva fortemente relacional que o abre para o encontro-reciprocidade (ALES BELLO, 2011, p. 328). O ser humano é constitutivamente um nó de relações de unidade e pluralidade (GARCIA RUBIO, 2001, p. 348-350). Não pode haver comunhão onde a diferença não é reconhecida, acolhida e mantida.
4. A Dignidade da Mulher na prática de Jesus
No quinto capítulo da Carta Apostólica Mulieris Dignitem, João Paulo II enfatiza a prática de Jesus Cristo que valoriza o homem e a mulher na sua reciprocidade, superando posturas patriarcais em detrimento da mulher e também do homem, ou seja, em detrimento da humanidade. Aparecem diversas mulheres no itinerário da sua missão, marcados por encontros singulares com cada uma delas, confirmando, deste modo, a “novidade de vida” evangélica (MD, 12, p. 49). Uma novidade instigante não somente para os inimigos de Jesus, mas até mesmo para seus discípulos (Jo 4,27).
A própria lei mosaica e os hábitos de seu povo eram, por Jesus, confrontados pelos valores do Reino que reconhece em pé de igualdade a dignidade do homem e da mulher, imagem e semelhança de Deus. Tinha profunda consciência de que essa imagem era ofuscada pelo “mistério da iniquidade” agindo nos corações humanos. No episódio da mulher surpreendida em adultério (Jo 8, 3-11), Jesus desperta a consciência do pecado nos homens que a acusam para apedrejá-la, pois esta situação abusiva, espelho de outras situações análogas na história da humanidade, confirma a transgressora injustiça machista.
Uma mulher é deixada só, é exposta diante da opinião pública com ‘o seu pecado’, enquanto por trás deste ‘seu’ pecado se esconde um homem como pecador, culpado pelo ‘pecado do outro’, antes co-responsável por ele. E, no entanto, o seu pecado escapa à atenção, passa sob silêncio, aparece como não responsável pelo ‘pecado do outro’! Às vezes ele passa até a ser acusador, como no caso descrito, esquecido do próprio pecado (MD, 14).
Deste modo, João Paulo II provoca a discussão para alguns elementos da época e hoje tão atuais, chamando a atenção para o fato de que muitas vezes, sob a influência de uma cultura machista, a mulher paga pelas consequências do pecado sozinha, como se o homem não tivesse participado dele também. Um exemplo nítido é quando ocorre uma gravidez indesejada em contextos irregulares, o homem, pai da criança, abre mão de sua responsabilidade de paternidade sem peso algum, uma vez que todos se voltam cobrando a decisão da mulher. Na mesma linha aponta o caso de mulheres em que se vendo em situação de abandono, solidão e sofrendo pressão da sociedade, inclusive do homem culpado, acabam “se livrando” da criança antes do seu nascimento (MD 14). O pontífice questiona se é possível que a opinião pública consiga anular o ethos da abertura à vida, inscrito no coração de cada mulher. Cabe ainda provocar a questão: que ethos em relação à vida cabe também ao homem?
Referências Bibliográficas:
ALES BELLO, Ângela. A mulher: história e problemas. As raízes cristãs do feminismo. In PERETTI, Clélia (Org). Filosofia do Gênero em face da teologia: Espelho do passado e do presente em perspectiva do amanhã. Curitiba: Champagnat, 2011.
BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2002.
BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acessado em 10/11/2015.
DECLARAÇÃO UNIVERSAL SOBRE BIOÉTICA E DIREITOS HUMANOS, 2005. Disponível em <http://unesdoc.unesco.org/images/0014/001461/146180por.pdf>. Acesso em 15/07/2014.
DEIFELT, Wanda. Teologias feministas. In: BORTOLLETO FILHO, Fernando (Org.). Dicionário Brasileiro de Teologia. São Paulo: ASTE, 2008. p. 985-986.
GARCÍA RUBIO, Alfonso. Unidade na pluralidade: o ser humano à luz da fé e da reflexão cristãs. São Paulo: Paulus, 2001.
JOÃO PAULO II. Carta Apostólica Mulieris Dignitatem. Sobre a vocação e a dignidade da mulher por ocasião do Ano Mariano. Rio de Janeiro: Loyola, 1989.
______________. Carta às Mulheres. 1995. Disponível em https://w2.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/letters/1995/documents/hf_jp-ii_let_29061995_women.html. Acesso em 10/06/2015. Acessado em 10/03/2015.
Comments