SER IMAGEM E SEMELHANÇA DE DEUS Elementos bíblicos e patrísticos da dignidade humana
- Larissa Fernandes Menegatti
- 5 de mai. de 2016
- 4 min de leitura

"O ser humano tem parentesco com Deus".
Gregório de Nissa
O ser humano, criado como imagem de Deus (Gn 1,26) ultrapassa em muito a problemática do estado original e diz respeito a toda a antropologia teológica. Este dado é conjuntamente um fator permanente e um fator único histórico-salvífico. Seja como origem, seja como estado original, naturalmente esta concepção cristã é fator complementar que determina constantemente a história do ser humano. Mas em que, então, consiste a imagem e semelhança de Deus no ser humano?
Para García Rubio[1], a dignidade e o valor do ser humano na revelação bíblica indica que ele deixa de ser um mero indivíduo para tornar-se pessoa, única e irrepetível. Na patrística, a defesa da imagem de Deus comporta sempre, tal como na perspectiva bíblica, a defesa do valor da liberdade e do ser pessoal de cada ser humano concreto. Dentre as posições mais importantes e influentes como chave de leitura principal de muitos Padres da Igreja sobre o tema da “imagem de Deus”, encontramos o pensamento do padre capadócio Gregório de Nissa (330-395dC), representante da patrística grega. Ele afirma que se Deus é o conjunto de todos os bens, o ser humano, enquanto sua imagem é, por sua vez, pleno de todos os bens.
Todavia, justamente por não ser o próprio Deus, mas apenas sua imagem, permanece uma diferença nítida entre os dois, consistindo no fato de que Deus é uma realidade subsistente, incriada, enquanto o ser humano recebe a existência por criação. O aspecto mais interessante e original de sua doutrina consiste no papel atribuído à liberdade que, para ele, é o traço mais marcante da semelhança do ser humano com Deus. Contudo, o exercício da liberdade que torna o ser humano semelhante a Deus, é aquele em que este lhe permanece dependente.
Visão integral do ser humano
A Sagrada Escritura apresenta-nos uma visão unitária do ser humano, sem dualismos, em que corporeidade e espiritualidade abarcam o ser humano num todo[2]. Nosso corpo é o ponto de partida para a teologia e também para a espiritualidade, pois nós partimos de nossas experiências humanas para refletir e falar sobre Deus e seu mistério. Entramos em oração com a totalidade de nosso ser. Somos um todo indivisível. Corpo e alma não são duas dimensões opostas, mas são a totalidade do ser pessoa, uma única realidade que constitui o ser humano integral.
Cada pessoa humana é um mistério. O ser humano exprime a presença do Pai como mistério abissal e íntimo. Na pessoa humana, homem e mulher, têm a dimensão da verdade, auto-conhecimento e revelação de si mesmo. O mistério possui sua luz e sua sabedoria. A condição humana expressa a presença do Filho, “Logos e Sabedoria”, atuando na pessoa, a comunicação do mistério, numa imensa sede de comunhão com o diferente e de união no amor. O Espírito Santo se faz presente nesta ânsia humana. O mistério, a verdade e a comunhão convivem na mesma e única pessoa; são realidades que constituem a unidade da vida. Aqui se encontra um reflexo da comunhão trinitária e o fundamento último do ser humano, como imagem e semelhança da Trindade[3].
Assim, entende-se o ser humano como um nó de relações de unidade e de pluralidade. O ser humano só é enquanto ser relacional em sua relação com Deus, de quem é filho; consigo mesmo, com quem deve ser autêntico; com os outros, de quem é irmão; e com o mundo de quem é administrador.
Homem e Mulher os criou
A maneira como a Bíblia evoca as relações homem-mulher pode ser situada no seu começo na forma de dois relatos da criação do mundo. Embora seus termos sejam muito distantes da nossa mentalidade científica, eles permanecem portadores de um sentido sempre atual. Em três capítulos, diz-se tudo: a semelhança, a admiração, a prova da relação. Antes de mencionar o drama da ruptura tanto do ser humano com Deus quanto do homem com a mulher, ele queria, sem dúvida afirmar primeiro a bondade radical da criação – “e Deus viu que tudo era bom” (Gn. 1,4.10.12.18. 21 25.31). Antes de falar do ser humano e de seu pecado, ele quis que não esquecêssemos de que o ser humano foi criado “à imagem e semelhança de Deus[4]”.
Afirmar isso é certamente reconhecer a proximidade que une o ser humano a seu Criador, mas é também lembrar-se da distância que os separa, pois a imagem não é idêntica ao seu modelo e não pode ser confundida com ela. A esse aspecto soma-se outro: o ser humano é a imagem de Deus na sua própria diferenciação sexual. O homem e a mulher devem acolher a unidade que precede sua distinção e a diferença que os faz ser um com o outro e um pelo outro. Aqui trata-se de evidenciar uma diferença não somente entre homem e mulher, mas também entre os homens e entre as mulheres, sendo cada um e cada uma únicos em sua singularidade.
A humanidade só pode ser uma se acolher o masculino e o feminino que a constituem numa relação de igualdade e reciprocidade. Somente a beleza do amor humano pode abrir a humanidade ao mistério de Deus. O encontro humano só é possível no encontro de liberdades que se abraçam. Esta realidade constitutivamente humana rejeita toda relação de tirania e escravidão sobre o outro, instaurando e desenvolvendo uma relação livre de gratuidade, de aliança e reciprocidade. Ambos se complementam e se interpretam mutuamente.
[1] GARCÍA RUBIO, Afonso. Unidade na Pluralidade: o ser humano à luz da fé e da reflexão cristãs. São Paulo: Paulus, 2001, p. 249-250
[3] BOFF, Leonardo. A Santíssima Trindade é a melhor comunidade. Petrópolis: Vozes, 1988, p. 270 ss.
[4] DEBERGÉ, Pierre. O amor e a sexualidade na Bíblia. Aparecida: Editora Santuário; Vargem Grande Paulista: Cidade Nova, 2003, pp. 43-44.
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