Fé e Ciência: um diálogo pascal
- Larissa Fernandes Menegatti
- 16 de mar. de 2016
- 8 min de leitura
Atualmente a teologia encontra-se diante de um grande desafio: repensar sua visão de mundo, sem com isso negar sua fonte inspiradora e sua razão de ser. Este cenário (pós)moderno exige uma atitude inteligivelmente mais crítica e reflexiva da fé.

Todo saber deve estar situado dentro de um contexto. Atualmente a teologia encontra-se diante de um grande desafio: repensar sua visão de mundo, sem com isso negar sua fonte inspiradora e sua razão de ser. Este cenário (pós)moderno exige uma atitude inteligivelmente mais crítica e reflexiva da fé. Ter fé é um sentido anterior ao calcular e ao agir do ser humano e sem o qual ele nem teria condições de calcular ou de agir, porque ele só pode fazê-lo no lugar onde há um sentido que o sustente. Contudo, a fé não nega a razão, ainda que a razão sozinha não dê conta de explicá-la cabalmente, e muito menos encurrale nossa liberdade, elemento constitutivo da autonomia, mas nos pede irmos além.
Opor evolução e criação impossibilita uma atitude dialógica entre religião e ciência. Para a teologia, o materialismo científico começa com a ciência, mas encerra-se em afirmação filosófica, enquanto o fundamentalismo bíblico parte da teologia, mas encerra-se em afirmações de assuntos científicos. Ou seja, partindo desta premissa, cada um corre o risco de entrar num campo que não lhe pertence e acabará dar explicações a respeito daquilo que não lhe compete (SANCHES, 2009, p. 25). O físico agnóstico Marcelo Gleiser, numa atitude de honestidade intelectual, em uma entrevista televisiva reconhece que existem coisas que a ciência pode explicar e existem coisas que fogem, escapam ao campo da ciência, pois ela não é um saber absoluto. Existem modos complementares de descrevermos a realidade. E querer explicar tudo pela ciência é esvaziar a riqueza do conhecimento humano.
Desenvolver a teologia da criação numa perspectiva cristológica nos possibilita uma visão mais aberta para o diálogo com as realidades terrestres, como propõe o Concílio Vaticano II. Em Jesus, Deus se fez carne, fez-se humanidade concreta, tomando e assumindo nossa criaturalidade, em sua condição biológica, psicológica, sexual, social e cultural, fazendo-se inteiramente pessoa humana sem deixar de ser inteiramente divino. A fé cristã não se preocupa apenas com o eterno, com aquilo que está fora do mundo e do tempo, mas diz respeito ao Deus que entra na história, e se faz história conosco. Deste modo ele torna-se pontífice que vence o abismo entre o tangível e o inatingível, entre o eterno e o temporal, entre o visível e o invisível, na encarnação do Verbo divino. “Neste ponto a fé ganha o grande salto, não mais ao infinito nos arrebatando deste mundo, mas por ele (Jesus Cristo) a fé nos é apresentada como Revelação. O Filho Unigênito, o Verbo encarnado torna-se exegese de Deus” (RATZINGER, 2005).
E o logos se fez carne, história, mundo
No princípio era o Logos, e o Logos estava com Deus, e o Logos era Deus. No princípio Ele estava com Deus. Tudo foi feito por meio dele e sem Ele nada foi feito.
E o Logos se fez carne e habitou entre nós, e nós vimos a sua glória, glória que Ele tem junto ao Pai como Filho único, cheio de graça e de verdade (Jo 1, 1-3.14).
A fé cristã pressupõe crer em um Deus que assume a condição existencial humana. Ideias meramente especulativas sobre Deus, ou uma espiritualidade alienante ao ser criado não abraçam o fundamento teológico cristão. O Logos tem nos escritos de João, principalmente no seu prólogo, um sentido que abarca os diversos aspectos do termo grego. É esse Logos que se torna realidade humana (Jo 1,14). Jesus como projeto realizado, que possui a plenitude da vida, é o ser humano em sua expressão máxima de sentido e o Filho de Deus, expressão de Deus, como um filho o é de seu pai.
Como expressão do projeto de Deus sobre o ser humano Jesus Cristo é a verdade acerca de Deus e acerca do ser humano mesmo, tornando-se assim, norma de comportamento para nós (Jo 13,34). Como palavra criadora eficaz, que dispõe da vida e a comunica (Jo 5,26), é o doador do Espírito (Jo 1,33), que dá a capacidade de tornar-nos filhos de Deus (Jo 1,12). Como Palavra que manifesta o ser de Deus, é a expressão de sua intimidade que quer comunicar-se: a manifestação da glória-amor do Pai, que leva à unidade e comunhão com Ele (Jo 17,22; 1,18).
A encarnação do Logos apresenta-se como a concentração final do pensamento criador e revelador de Deus. Ele é aquilo que a humanidade fora destinada a ser na intenção de Deus, chamado por isso, o Filho do Homem. Atingimos o ápice do Prólogo com as palavras o logos sarks egeneto, ou seja, o Verbo se fez carne, frase a qual nos conduz para além da lógica judaica. Esta expressão é a novidade por excelência de todo o conceito de divindade até então construído. O público que João buscava alcançar não teria condições de reconhecer que ele estava falando de um sujeito histórico, até que a expressão o logos sarks egeneto o despertasse abruptamente e o preparasse para a explicação que se segue nos versículos seguintes de João 1, 15 a 18.
O autor do prólogo escolhe uma imagem que indica a condição contingente e transitória do ser humano: a tenda do nômade e não uma casa estável e segura de uma cidade. O divino então é revelado historicamente na contingência e na fragilidade da criatura. Se considerarmos as consequências da proposição o logos sarks egeneto à luz de toda a história que procede, veremos neste mistério o sentido deste paradoxo. Entretanto, a vida de Jesus é a história do Logos enquanto encarnado, e esta deve ser, no cenário de um tempo limitado o mesmo que a história do Logos em relações perpétuas com o ser humano e com o mundo.
O desígnio salvífico da história revelado em Jesus Cristo
A encarnação de Jesus Cristo não é um acontecimento ou mero evento histórico, e sim a entrada da eternidade no tempo. Tampouco sua ressurreição é um acontecimento dentro da história, e sim a irrupção do Ressuscitado desde a história na eternidade (Mt 11,25-26). Com isso, a história não é apenas palco provisório de um futuro eterno. Seguindo a linha de Irineu de Lyon, a encarnação conduz a seu termo toda a criação que espera, no seu próprio pecado, sua libertação e salvação. É no fragmento e na precariedade, na carne e na vulnerabilidade, que o eterno se faz presente. O mundo não é apenas o espaço onde o ser humano vive, mas é também o espaço onde Deus se encontra (SANCHES, 2009, p.71). Por aí passa a recapitulação em Jesus Cristo, Senhor de todas as coisas, que vem para realizar o sentido originário da criação (EICHER, 2005, p.785).
A espiritualidade, como a teologia, procura extrair os significados deste evento da salvação como desencadeamento escatológico de Deus na história. Propriamente Jesus é a vida de Deus mesmo traduzida na história da humanidade. Na teologia clássica da Idade Média dava-se a impressão de explicar a vinda do Logos ao mundo por causa do pecado de Adão, sem o qual não teria acontecido o mistério pascal. A doutrina do pecado original cumpre a função de tornar presente a necessidade para todo ser humano do dom gratuito de Cristo e de sua capacidade absoluta para adquirir autonomamente a salvação.
A humanidade é, desde toda a eternidade, querida por Deus em vista de Jesus Cristo, único recapitulador em Si mesmo de toda a criação (Ef. 1,1-14). Pela fé em sua ressurreição, apesar das aparências e, embora desde o começo exista dois dinamismos: o do pecado e da graça, ele é o Senhor dos tempos, o Senhor da história. Após sua ressurreição, Jesus dizia a seus discípulos na noite de despedida: “a vós convém que eu vá” (Jo 16,7). A solidão dos discípulos é para sua salvação. Ela permite que eles passem de uma existência com Jesus, concentrada na intuição sensível para uma existência pessoal como testemunhas. Quer dizer, agentes responsáveis, sujeitos que seguem criativamente o paradigma de Jesus (TRIGO, 1988, p.157).
Portanto, a fé na ressurreição de Jesus Cristo entende a história como algo que está nas mãos de Deus. Ela não está decifrada em cada uma de suas figuras, em seus fragmentos, mas apenas na solução final que amarra e lhe dá seu sentido pleno. Existe um dinamismo de pecado anterior, mas também, interior a cada pessoa. E existe, de um modo mais poderoso e determinante, o dinamismo da graça de Cristo, este também anterior e interior a cada pessoa. Estes dinamismos entram no mundo de cada um como leque de possibilidades, facilidades e dificuldades, inclinações, redes de solidariedade, cristalizadas muitas vezes em estruturas e situações. Mas eles se concretizam propriamente nas decisões (TRIGO, 1988, p.156-157).
Conclusão
Jesus Cristo não é uma figura dualista, que se fecha em oposição entre o terreno e o celestial. Nele estão definitivamente reconciliados e em perfeita síntese Deus e o ser humano, a revelação e a fé, a terra e o céu, a carne e o espírito (BINGEMER; FELLER, 2003, p.68-69). Sendo assim, a nova criação em Jesus Cristo possui como pedra de toque o princípio da encarnação que tem por implicância radical a necessidade de nos deixarmos afetar pela realidade que nos circunda com todo o seu contexto socioeconômico e cultural. Assumindo com Cristo, por Cristo e em Cristo toda a dimensão humana e histórica da criação, seremos capazes de construir pontes de diálogo e solidariedade entre a religião e a ciência, entre a fé e a razão.
O pensamento ocidental oscila, por assim dizer, entre dois extremos: por um lado, o primado de Deus no assunto da graça parece ameaçar a dignidade do ser humano; por outro, receia que a glorificação do ser humano possa prejudicar a soberania de Deus, colocando-o em um dilema distorcido: “ou Deus ou o ser o humano”. A evolução é artigo da ciência e pode ser provada com base em posições empiricamente estabelecidas enquanto a criação é um artigo de fé, que exige crença para ser afirmada. O importante é que ambas podem ser aceitas sem contradição, pelo cientista que crê ou pelo religioso que busca uma visão científica do universo (SANCHES, 2009, p.30).
A evolução da ciência e da teologia consegue hoje estabelecer pontes de diálogo, pelo fato de ambas terem identificado melhor seu objeto de estudo, sua competência e seus limites. Longe de ser mero criticismo ou um desserviço, as ciências oportunizam à teologia uma crítica que também purifica a fé (RIBEIRO, 1995, p.32). Os conceitos de criação e evolução, portanto, não só podem ser inter-relacionados como na verdade se explicam mutuamente (SANCHES, 2009, p.31). A premissa cristológica da encarnação deixa claro que não pode haver oposição entre a racionalidade da fé e das demais ciências. Na criação do universo nosso planeta é incomensurável nas suas formas de vida e subsistência. O fato de sermos raros e preciosos neste cosmos deveria despertar em nós atitudes de cuidado e proteção por aquilo que somos e pela Casa Comum que temos.
Referências Bibliográficas:
BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2001.
BINGEMER, M. C; FELLER, V, G. Deus Trindade: a vida no coração do mundo. São Paulo: Paulinas; Valência: Siquem, 2003.
EICHER, P. Dicionário de Conceitos Fundamentais de Teologia. São Paulo: Paulus, 2005.
RIBEIRO, H. Ensaio de antropologia cristã: da imagem à semelhança com Deus. Petrópolis: Vozes, 1995.
SANCHES, Mário. Criação e Evolução, diálogo entre teologia e biologia. São Paulo: Ave Maria, 2009.
SANCHES, M; DANILAS, S. Busca da Harmonia entre religião e ciência no Brasil: reflexões a partir do ano de Darwin. Teocomunicação. Porto Alegre, v.42, n.1, p.98-118, jan./jun. 2012. Disponível em: <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/tel/article/viewFile/11297/7706>. Acesso em: 16 dez. 2012.
TRIGO, Pedro. Criação e História. São Paulo: Vozes, 1988.
Comments