top of page

A fé no contexto atual: uma leitura a partir de Joseph Ratzinger

  • Larissa Fernandes Menegatti
  • 16 de mar. de 2016
  • 4 min de leitura

Joseph Ratzinger (Papa Bento XVI)

A fé é ruptura, um salto arriscado, porque representa em qualquer época, o risco de aceitar como verdadeira realidade e fundamento aquilo que é invisível por natureza (RATZINGER).

O cenário contemporâneo marcado por pluralismos culturais, religiosos e até mesmo científicos desafia o ser humano a encarar a questão de Deus para além de reduções a cultos e normas. Respostas fechadas abrem lacunas para novas perguntas levantadas por esse contexto atual. O ato de crer exige racionalidade e sentido, situando a fé no âmbito das decisões fundamentais que o ser humano precisa tomar, quer queira, quer não, como reconhecimento ou como negação. Significa que o ato de fé autêntico leva o ser humano a agir conforme sua racionalidade, ainda que essa sozinha não dê conta de explicá-la cabalmente, não há outro caminho de compreensão e adesão humana da fé que não dialogue com a razão.


1. A fé e o desafio de seu discurso


Para Joseph Ratzinger, a fé é um sentido anterior ao calcular e ao agir do ser humano e sem o qual ele nem teria condições de calcular ou de agir, porque ele só pode fazê-lo no lugar onde há um sentido que o sustente (1970, p. 54). De fato, ela não anula a razão e muito menos elimina nossa liberdade, mas nos interpela a irmos além. Sendo assim, a fé é a adesão ao primado invisível e do real verdadeiro que nos sustenta e que, por isso mesmo, nos capacita enfrentar o visível com íntegra serenidade, numa atitude de responsabilidade ante o invisível como verdadeiro fundamento de todas as coisas (1970, p. 55). Essa reflexão também se encontra nas entrelinhas de seu discurso de abertura da Conferência de Aparecida, quando argumenta o conceito de realidade em relação a Deus.


O que é o real? São "realidades" somente os bens materiais, os problemas sociais, econômicos e políticos? (...) Falsificam o conceito de realidade com a deturpação da realidade fundante e por isso decisiva, que é Deus. Quem exclui Deus do seu horizonte falsifica o conceito de "realidade" e, por conseguinte, só pode terminar por caminhos equivocados e com receitas destruidoras.


Para falar da situação do crente no cenário atual, Ratzinger coloca a dificuldade de expressá-la por meio da linguagem eclesiástica que causa certa estranheza para estabelecer um diálogo. A imagem plástica do palhaço descrita por Kierkegaard e Harvey Cox, torna-se uma figura emblemática do discurso do teólogo na sociedade contemporânea. O palhaço, frente a uma ameaça real, corre até uma vila de moradores buscando ajuda para combater um incêndio que começara no circo e corria o risco de se espalhar atingindo todo o povoado circunvizinho. Porém, as pessoas não o levam a sério, sendo que a única reação que consegue arrancar dos ouvintes são aplausos e risadas por suaperformance. Em consequência ao descrédito de suas palavras, aquela vila é atingida e destruída pelo fogo que se espalhara (RATZINGER, 1970, p. 31-32).


Essa imagem retrata o discurso da fé, muitas vezes estigmatizado por um estereótipo que não condiz mais com a realidade atual e que em várias ocasiões perde seu crédito nos espaços públicos. Para solucionar o problema recorre-se a certos fakes, tentativas desesperadas de aceitação que tornam a esperança cristã um tanto ingênua e infantil, incapaz de provocar diálogos sérios e honestos com a sociedade. A primeira saída seria uma espécie envernizada de aggiornamento da fé, mas é insuficiente apenas colocar a roupa da moda para parecer estar atualizado; a segunda saída seria uma espécie de total desmitologização da fé, a ponto de tirar não somente as vestes, mas seus elementos fundamentais (RATZINGER, 1970, p. 32-33). Todavia, essas saídas revelam a ameaça da incerteza humana: a dureza da fragilidade de tudo aquilo que costumava parecer seguramente tão evidente, que assalta até aqueles que são nossos referenciais no caminho da fé.


Quem na estranheza do empreendimento teológico dirigido aos homens de nosso tempo, levar a sério sua missão, experimentará e reconhecerá não apenas dificuldade de fazer-se entender, mas também a insegurança da sua própria fé e o poder aflitivo da incredulidade presente em sua própria vontade de crer (RATZINGER, 1970, p. 33).


2. A dinâmica interna da fé


A questão fundamental de crer no mundo atual consiste em esclarecer o que significa quando alguém afirma: “creio”. A busca desta significação esbarra-se em outra questão: religião e fé são realmente a mesma coisa? No Primeiro Testamento a experiência do povo de Israel era mais entendida como uma lei, uma ordem de vida na qual o ato de fé adquiria importância processual. Já para os romanos sua religiosidade baseava-se na observância de um sistema de ritos, não sendo deste modo decisivo algum ato consciente de fé. Ratzinger critica a ingenuidade de pensar e declarar que a Idade Média tenha sido uma época em que todos eram fiéis. Na verdade por trás dos bastidores havia uma grande massa de oportunistas presentes tanto entre os leigos quanto na hierarquia da Igreja, e um número relativamente pequeno de pessoas realmente engajadas na dinâmica interna da fé. Apontando esses equívocos, o teólogo alemão desenvolve o conceito do que é ter fé, numa perspectiva integral:


Ter fé significa decidir que no âmago da existência humana há um ponto que não pode ser alimentado e sustentado pelo que é visível e tangível, mas que toca na fímbria daquilo que não é visível, a ponto de este se tornar tangível para ele revelando-se como algo indispensável à existência. A fé é ruptura, um salto arriscado, porque representa em qualquer época, o risco de aceitar como verdadeira realidade e fundamento aquilo que é invisível por natureza. Além do mais, é uma decisão que envolve toda a profundeza da existência humana (RATZINGER, 1970, p. 37-38).


Em sua Carta Apostólica Porta Fidei para a abertura do Ano da Fé (11/10/2012), Ratzinger reconhece que no contexto da cultura atual, “há muitas pessoas que, embora não reconhecendo em si mesmas o dom da fé, todavia vivem uma busca sincera do sentido último e da verdade definitiva acerca da sua existência e do mundo”, reconhecendo que esta busca seja um autêntico “preâmbulo” da fé (2012, p.15), muito mais verdadeira de muitos que se declaram ter fé (grifo meu).



Referências Bibliográficas:


BENTO XVI. Porta Fidei: Carta Apostólica sob Forma de Motu Próprio com a qual se proclama o Ano da Fé. São Paulo: Paulinas, 2012.


RATZINGER, Joseph. Introdução ao Cristianismo: Preleções sobre o Símbolo Apostólico com um novo ensaio introdutório. São Paulo: Loyola, 2006 (2ª edição). Edição original: 1970.



 
 
 

Comments


Destaque
Tags
bottom of page